ricardo araújo pereira e otelo saraiva de carvalho





A complexa iconoclastia de Otelo
Otelo consegue ser um arrependido do 25 de Abril antes de ser um arrependido das FP 25 de Abril. É obra.

Ricardo Araújo Pereira

As comemorações do dia 25 de Abril resistem com cada vez mais dificuldade às lamentações do dia 25 de Abril. Primeiro, porque as primeiras decorrem apenas no dia 25 de Abril, enquanto as segundas decorrem durante todo o ano. Segundo, porque há cada vez mais quem lamente e cada vez menos quem comemore. A toda a hora ouvimos "Maldito 25 de Abril!" e "Isto precisa é de um novo Salazar!" É insuportável, este reacionarismo de velhinhos salazaristas, energúmenos anónimos de todas as idades e capitães de Abril.

Todo o reacionarismo é rico e interessante, mas o mais interessante de todos é o dos capitães de Abril. Quando Otelo Saraiva de Carvalho dá uma entrevista a manifestar arrependimento por ter participado no 25 de Abril (ou, como ele diz, por ter inventado, planeado, organizado e executado o 25 de Abril), e quando diz que o País precisa de outro Salazar, está a produzir as declarações políticas mais intrincadas da história da democracia portuguesa. Por onde começar, se é tudo tão complexo? Primeiro, as declarações de Otelo revelam que o 25 de Abril foi feito por um salazarista. É uma notícia desconcertante. Que andam os democratas a fazer, quando celebram uma revolução levada a cabo por um fã de um ditador? Que andam os salazaristas a fazer, se têm levado anos a execrar um dia que foi arquitetado por um deles? Não sei se começa a ficar claro o modo como Otelo conseguiu pôr um país a pensar sobre si mesmo e a sua História. Otelo consegue ser um arrependido do 25 de Abril antes de ser um arrependido das FP 25 de Abril. É obra.

Havia uma seita religiosa, os chamados cristãos cátaros, que tinha um costume encantador e profilático. Assim que um moribundo recebia a extrema-unção, uma piedosa comitiva de abafadores apressava-lhe a morte aplicando uma almofada sobre o nariz e a boca, não fosse ele ter a tentação de pecar já depois do perdão dos pecados. As pessoas vivas têm uma aborrecida tendência para pecar que as distingue das mortas, que são invariavelmente mais sensatas. Não havendo, na democracia, a figura higiénica do abafador, Otelo pôde continuar a pecar depois de ter participado na Revolução dos Cravos, feito que garante a redenção de qualquer alma. É justo. O dia 25 de Abril deu-nos a liberdade toda, incluindo a liberdade de sermos uns palermas. Por isso, muito obrigado, Otelo. E continue a desfrutar, se tem mesmo de ser.

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