depois de 15 de setembro

Por Nuno Ramos de Almeida

Qual é o momento em que aquilo que parecia normal se torna intolerável? Que gesto transforma a submissão em recusa? Aquilo que aconteceu em Portugal só surpreende os cultores do povo de brandos costumes. Só esses não entenderam que as palavras proferidas por Passos Coelho a 7 de Setembro derrubaram a ideia acalentada pelo executivo de que os portugueses são um povo manso que aceitaria com um sorriso nos lábios todas as experiências neoliberais que a troika estava disposta a inventar. Para mal de tal gente, as pessoas cedo perceberam que a insistência na sangria como cura de um país era falsa. Os remédios da troika não salvam, apenas servem para pagar com juros de agiota os dinheiros da troika e dar aos amigos do costume as empresas públicas construídas com o dinheiro de gerações de portugueses.

As centenas de milhares de pessoas que tomaram as ruas das cidades em 15 de Setembro tornaram o momento irreversível. Preferiram levantar-se a aceitar o que lhes garantiam que era inevitável. Em mais de 40 cidades desaguaram manifestações sem donos em que um multidão plural respondeu a um apelo concreto: não queremos mais as políticas da troika e o governo dos mais troikistas do que a troika.

Querem convencer-nos de que não há alternativas a esta submissão. É preciso esclarecer que não há é futuro com este Memorando. Recusar a corrida para o abismo é o primeiro passo para construir outro caminho.

Vivemos um tempo de mudança. É preciso fazer uma verdadeira revolução que devolva o poder às pessoas. Esta política não foi discutida nem votada. Temos o direito de escolher o futuro. Não tenhamos medo da palavra. Trata-se de uma recusa absoluta da forma como nos têm governado: uma verdadeira revolução democrática.

É possível fazer uma revolução sem pronunciar a palavra? É possível viver sem pensar em palavras? A revolução é como a paixão, parte da não aceitação daquilo que existe e do desejo de conseguir aquilo que é dado como impossível. São rupturas que criam as suas próprias condições de possibilidade, dão vida aos seus próprios antecedentes passados. Como escrevia Rimbaud quando pensava no inferno e se propunha transformar o mundo e mudar a vida, “l’amour est à reinventer, on le sait”.

Vivemos uma época divertida em que nos apresentam, como conquistas civilizacionais, o café sem cafeína, o amor sem riscos e a política sem revolução. Uma campanha de um site de encontros francês proclamava com orgulho: “É possível ter paixão sem ficar apaixonado.” E acrescentava: “Pode perfeitamente estar apaixonado sem sofrer.” Para resolver este embate, o site propunha uma espécie de “coaching do amor” para menorizar este choque traumático que é um encontro com o outro.

Nesta cruzada pela segurança das almas juntam-se os liberais. Não há nada mais parecido com a doutrina do mercado capitalista que esta ideia das relações afectivas e sexuais como uma questão de gozo ligada a expectativas de consumo.

Na política como na vida, deve-se lutar para reinventar o risco e a aventura contra a segurança e o conforto. Badiou defende que há no amor, como na revolução, uma capacidade de produzir verdade e uma semente da universalidade que transcende num momento a nossa própria mortalidade. Seja isso o que for, passa pela capacidade de se somar ao outro. Aquilo que começa por um encontro do acaso torna-se um momento de ruptura, como escrevia Mallarmé: “L’hasard est enfin fixé…”

As palavras são o momento dessa ruptura.

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