há alguém por aí para enfrentar a triste degradação da justiça?

Por Francisco Louçã
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O caso Sócrates só podia despertar paixões épicas. Foi assim desde o início, será assim até ao fim. O recente episódio da proposta de prisão domiciliária voltou a atiçar essa fogueira, com comentadores a elogiarem ou a invectivarem a atitude do ex-primeiro-ministro e outros a denunciarem a sua máxima culpa. Uns com prudência e outros com concupiscência.

Sem prejuízo destas opiniões, não estou de acordo. Todas elas partem de uma posição irredutível e determinada: ou o homem é culpado (e então merece todo o castigo desde sempre) ou é inocente (e a recusa da prisão domiciliária é um assomo de dignidade). Decerto, será uma ou outra. Mas o meu ponto é que não temos meios para saber qual delas é a verdade. Só podemos supor, ou por solidariedade pessoal ou política, ou por um ódio de qualquer estirpe. E supor é insuficiente. Ora, não devemos basear a nossa atitude numa suposição, determinada unicamente por paixões, nem muito menos deixar que as suspeitas ou até convicções dos espectadores que somos todos se tornem o substituto da justiça.

Não podemos e não devemos, tanto mais que estamos a ser bombardeados pela mais longa fuga ao segredo de justiça de que me lembro. Se pensa que tudo se tornou possível, aperte o cinto de segurança que vai haver muito mais. Já tivemos a divulgação da gravação de um interrogatório umas horas depois da sua realização, usando o truque de entregar uma cópia à defesa para confundir o rastro do crime, e o que mais virá? Temos constantes e reiteradas antecipações em jornais de “provas” que não foram apresentadas à defesa e que nem podemos saber se figurarão sequer na acusação, e o que mais será? E nem sabemos quando será a acusação: um ano depois, um ano e meio depois, antes das eleições, depois das eleições?

Sugiro ao leitor que se mova então pela única certeza que podemos ter: este processo está a ser conduzido sem respeito pela justiça ou até pela decência. Não há acusação e passaram meses, não há acesso da defesa aos documentos e provas e isto ainda se pode prolongar mais uma eternidade, mas choveram milhões e casas e malas e ligações e viagens e Venezuela e Algarve e Suíça e tudo o mais.

É isto uma perseguição especial contra Sócrates? Pode ser mas também pode não ser. De facto, a justiça portuguesa procede rotineiramente desta forma, usando a lei e abusando das normas. E o caso Sócrates importa menos do que esta regra geral: esta justiça mete medo.

Creio por isso que só podemos responder ao problema democrático, que nos diz respeito a todos e todas, e nunca podemos responder ao problema da culpa, porque esse é que não nos compete. O problema democrático é que há pessoas que ficam em prisão preventiva durante anos até ao final do julgamento. O problema democrático é que as escutas a Valentim Loureiro ou a Isaltino de Morais nunca deviam ter chegado aos jornais antes de o processo sair de segredo de justiça. O problema democrático é que Ricardo Salgado não devia ter sido detido para depor, porque a detenção não serve para o efeito de constituir arguido e ouvir o dito e toca a andar. O problema democrático é prender para depois investigar. E o problema democrático é que se tornou tão fácil transformar num show os processos de investigação a crimes hediondos como a corrupção, que está a ser criada uma oportunidade de mercado para corromper quem tenha acesso a informações em qualquer desses processos por corrupção – se for suficientemente mediático. Creio que uma das vítimas colaterais deste modo de proceder será a credibilidade das condenações, se as houver nestes casos.

Por tudo isto, devo dizer-vos que acho insuportáveis as frases de responsáveis políticos que se refugiam num timorato “deixar à justiça o que é da justiça”, para não terem que se meter no sarilho de enfrentar esta degradação da vida democrática que se espraia à nossa frente. Sim, acredito neles só se me disserem o que tencionam fazer a respeito do que a justiça não faz. Não para Sócrates, mas para todos. Não para agora nem para este caso, mas como regra para todos os casos, a começar pelo mais desconhecido ou insignificante.

Se aprendemos alguma coisa com o que se está a passar, então vejamos quem se adianta e propõe limitações estritas ao tempo de prisão preventiva, quem garante o acesso da defesa à informação relevante, quem garante meios para investigações capazes pelas autoridades policiais e judiciais, quem limita o abuso das escutas indevidas, quem está pronto para punir os atrasos nos processos judiciais, quem está disposto a abolir o segredo de justiça em consequência do aperto dos prazos da investigação, quem aceita impor que a acusação seja feita em tempo certo, quem esteja preparado para expulsar da profissão e punir os juízes, magistrados do ministério público, advogados ou funcionários que ilegalmente tornem públicas informações sob segredo.

É fácil demais manter a questão como o “caso Sócrates”. As paixões tudo abafarão e ficaremos como na conversa sobre a ida de Jorge Jesus para o Sporting: ama-a ou deixa-a. Esse ruído ocultará sempre o fundo mais fundo da questão, que é uma justiça que não acredita em si mesma. É preciso salvar a justiça dos seus protagonistas, dos seus costumes, das suas teias de cumplicidades, das suas facilidades.

E isso já é com os candidatos – os das legislativas e sobretudo os das presidenciais. Digam-nos o que querem fazer ou fiquem de lado, porque se estão calados então não têm solução para os problemas de Portugal. É uma questão de regime, é mesmo convosco, senhores candidatos e senhoras candidatas.

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